acatalepsia

July 15, 2008

Nuvens


Nuvens carregadas indicam que a chuva se aproxima. Protegidas estão as peças de porcelana sob o aparador ao lado da janela. Também alguns enfeites de juta, que nem precisam de qualquer cuidado, se escondem do mau tempo encolhidos próximos ao rodapé. Almofadas e travesseiros forram a parede oposta ao final do corredor, evitando assim grandes estragos. Só há uma fresta, onde uma joaninha atravessa o limite que a prudência demarca. Dotada só de bom-senso, a protagonista, ao contrário, prefere não se mover. Posiciona-se nua no centro do palco/sala, sozinha. Escreve mentalmente o último ato deste cenário quase vazio. Nuvens carregadas indicam que a chuva se aproxima. Protegidos estão seus olhos, pois não vêem a dor que sente. Também duas pedrinhas que trazia consigo, e que não precisam de qualquer cuidado. Fora isso, tudo se arrisca. Não há outros esconderijos, encostas ou abrigos. A natureza lhe lança uma enorme nuvem, pesada e escura, que atravessa o céu e seus pensamentos. Todo tempo é nublado e cada gota é evidência. Resta-lhe a chuva. Torrencial, fina, de granizo, de areia, de vento, fria, passageira. Aquilo que não se elimina, subjaz. Nuvens se aproximam indicando chuva carregada nas próximas horas. No centro da sala/palco, acendem-se as luzes para a última cena, em que a protagonista nua deixa cair dos olhos uma lágrima e logo depois desaba. Chovem canivetes.

November 27, 2007

AB... ou paradigma da impossibilidade do amor

A história é, como toda história, retrospectiva, e, como toda história, verídica. Farei um enorme – grandíssimo – esforço narrativo de me ater à fidelidade dos fatos que irei inventar. Para tanto, saibam logo que isso implica em dor, sofrimento, concentração, morte, entre outras implicações menos românticas. Morro um pouco pra que a história nasça. Retraio a minha mentira pra que sua verdade brote.

Houve um tempo em que havia um rapaz chamado A. Nesse mesmo tempo havia também uma simpática garota chamada B. Não omito os nomes. Chamavam-se assim mesmo. Nesse tempo, A e B se bastavam. Adentremos então ao cenário e à dramaturgia de folhetim: A conhece B. (Não seria correto dizer que B conheceu A, no mesmo instante. Não vem ao caso dizer o porquê, mas me defendo cabalmente, indignado: - Qualé! Também não tenho como saber de tudo!)

Retomando, A conhece B. A ainda não sabe, mas B será dentro em pouco a sua namorada. A inicia uma estranha conversa com B. Fala sobre a necessidade de adotar uma postura mais consoante com a vida que tem. Não se sente autêntico. Estabelece relações fortuitas com garotas fúteis, seguidas vezes, sempre aos sábados. Passa os domingos a lamentar as sabatinas. Sofre amargamente e sozinho. Mas não é lá de se entregar, e, diagnosticando a causa errada, passou a odiar os domingos. Queria transformá-los em segunda e foi procurar um trabalho, de domingo. Foi indicado a um rabino preguiçoso, que pediu a ele que sublinhasse em azul todas as ocorrências da letra R na Torá. Demoraria cinco domingos, um pra cada livro. Daí em diante, A não mais lamentou domingos, e, mergulhado no misticismo judaico, adotou a prática cabalística pra tudo que lia a partir de então. Completou o vazio do primeiro dia, sublinhando Rs, compulsivamente. Reconheceu-se um cabalista quando descobriu que determinada edição de uma revista semanal tinha 36 Rs em todas as páginas. Transformou-a em um texto sagrado.

B demorou a entender do que A falava. E ainda não descobriu o motivo de ter falado tanto, contado tantas coisas em tão pouco tempo. Mesmo sem fazer qualquer sentido, se interessou pela última parte. Era afeita a coincidências. Buscava nexos naquilo que aparentemente não havia, e, assim, achava que o tédio era fruto de uma sucessão de alegrias parciais, interrompidas por um telefonema. Irritava-se com o toque de qualquer telefone.

A e B começaram a namorar. Nunca aos domingos e nunca por telefone. A agora é autêntico. Cabalista, dono de um peculiar texto sagrado, namorado de B. Tem a exata certeza de ser único. B sabe que é a única a perceber as coisas. Notou que pela junção de seus nomes poderiam dar início a uma série finita de signos, capazes de gerar o mundo. Tinha forte tendência metafísica e um namoro alfabético.

Eram, assim, felizes. Nesse tempo A e B não mais se bastavam. A ânsia combinatória de B tornou-se dependente do trabalho sublinhar de A. Achava-se tola ao lembrar das superficiais coincidências que encontrava antes do namoro. É claro!, pensava. Nada podia haver antes de A, o antecedente necessário àquilo que ela era. Tornou-se também discípula da edição nº 26, ano 5, da adorada revista. A se impressionava com cada palavra de B. Via nela a possibilidade de encontro do sentido da articulação de todas as ocorrências de R no mundo. Juntos podiam tudo.

Passaram a ser AB, e não mais A e B. B escrevia seus nomes em corações vermelhos, sempre seguidos de reticências. AB... A era menos romântico, mas percebeu que B era um R sem falha, uma versão mais bem acabada do que buscava em todas as coisas. Foram lindamente felizes, impregnando tudo de sentido, porcas, baralhos e sabonetes.

Aparentemente mais uma bela história retrospectiva e verídica de amor. Mas se lida nas entrelinhas, como faria B, pode-se notar o princípio do fim. AB não mais atende à necessidade de autenticidade de A. Em breve estará novamente angustiado, carente de identidade e cheio da falta de regularidade das ocorrências de B, ao aplicar uma perspectiva nova a cada leitura que faz da vida, da morte, da alma, do mundo. Rapidamente para ele, a beleza da fala da namorada se transformará em odiável apuro retórico acerca de questões sem sentido. B, ao folhear a revista sagrada, encontra um R não sublinhado, na página 72. Desmorona em choro copioso, reconta a página 73, a 15, a 21. Nada mais faz sentido. A é uma fraude.

Voltemos ao cenário. Tarde de maio, indiferentes a presença um do outro, perdidos no nascimento de cada uma de suas infelicidades, A se aborrece com B que diz, angustiada, que nada principia em AB... que a posição das letras no alfabeto é contingente, que o início da cadeia poderia ser em G, em O, em qualquer uma, bem como a seqüência poderia ser outra. Ele diz a ela que a sua tarefa de sublinhar Rs, assim, não faria qualquer sentido, por desconsiderar a décima oitava posição da letra em relação às outras, motivo caro ao rabino preguiçoso. B concorda, fala que nada mesmo faz qualquer sentido, a vida, a morte, a alma, o mundo. Diz aos gritos que a página 72 tem 37 Rs bem contados e que tudo que ele acreditava era a maior das bobagens que ela já tinha ouvido. Faço aqui uma pausa. Precisaria ser longa. E silenciosa. Já se sabe o que acontece depois, não se deve subestimar os leitores, jamais! Choraram ambos, se abraçaram, espernearam, mas nada mais falaram.

Voltaram a ser A e B. Felizes e infelizes.

Omiti momentos mais dramáticos, acrescentei algumas vírgulas. Não me perguntem o que se fez deles depois. Gostaria de saber, mas morro aqui, pra que eles nasçam. Afinal de contas, estou amando.

November 23, 2007

Cada vez mais, nada

Olho meus dedos tocarem as teclas. Olho a tela, retangular, brilhante, lisa. Olho o pouco cabelo que me cai aos olhos. Ouço um discreto tic-tac das horas. Ouço algo que vem da rua, e o resto, eu sei, é silêncio, ainda que não o perceba. Sinto cheiro de borracha queimada, que nem imagino de onde vem. Sinto pouco frio e meus olhos arderem. A luz da tela contrasta mais, à noite. Contenho palavras pouco simpáticas pras pessoas mais queridas. Seguro no peito, dor. Não seguro nada entre as mãos. Arranco com os dentes, unhas. Com o que resta cutuco o que resta da outra. Nada mais resta.

Aproximo-me de mim, sozinho. E quanto mais próximo mais estranho, mais avesso, mais distante. O que me sobra da análise são as letras. Nada mais. Não sou nada nem ninguém. Aquilo que posso fazer de mim, não faço. Aquilo que quero fazer de mim, também não faço. Aquilo que querem fazer de mim, não deixo que o façam. Retorno às letras, palavras, frases, em busca de algo diferente desse nada. Encontro.

Ainda não sei o que encontrei. Não sei explicar. Não parece muito difícil, de nenhuma façanha sou capaz. Estala na ponta da língua e não sai. Pudesse cortá-la, o faria. Posso, mas não faço. Devo, mas não faço. Isso, de mim não querem. Aperto na mão os dedos, cerro os olhos, controlo o arfar.

...

Passaram-se duas horas de quando comecei as letras. Nada mudou. As paredes continuam solidamente mais relevantes que qualquer linha. Talvez o espaço do quarto tenha se reduzido um pouco. Pareço oprimido? Não, nada que lembre um claustro. O ponteiro se move lento e alto, sem fazer sentido. Quantos dias couberam nessas duas, ou três, horas? Tempo bobo. Nada entende de tempo.

...

Alecrim. Pastilha de menta. Régua de plástico transparente. Tic-tac arrastado das horas. Tudo o mais que se distingue de mim, pra mim, agora. Senhores e senhoras sinceras, pelas quais queria/devia me apaixonar. Como consigo ser tão piegas?

...

Serena em mim, que disso preciso.
Onde não há luz, som, vida ou risco,
há/não há (?) outros rechaços,
por fazer de mim pressentimento.

Cala-me a voz que nada diz,
faz-se senhora velha e surda
na insensata ausência de contraste
face à noite, clara/escura.

Vazio concreto e inefável,
pálido indício de certeza pétrea,
ser na morte, pra morte,
sem outro lugar, cabimento.

Valha-me sorte!
Da dor não quero mais um pio!

October 02, 2007

Entrelinhas

Estrada que se desfaz em chão,
silêncio-clichê que fala,
apatia da incompreensão,
noites insones a pensar no penso,
sensores fraus de tristeza,
estrelas várias que precipitam,
pedras, ruas e solenidades,
qualquer coisa nas entranhas
a reprimir curiosidades,
temor de ser e não ter
também de ter e não ser,
bolor que o tempo procria
e que a saudade umedece,
na distância que não encurta,
o amor frugal de outrora.

August 31, 2006

A tripartição de Lígia

Contados três dias, chega-se ao dia de hoje, em que Lígia observa paredes nuas e quartos vazios. Essa aparência se faz dramática em contraste com o que se passa por detrás de seus olhos – com o que pensa, com o que sente, com o que ama. É por isso que agora ela está ali parada, olhando a parede que divide o que era a sala do que era a copa. O indício de habitação que resta não pode ser percebido e se resume às figuras de flor coladas por dentro da porta do armário.

Lígia respira e reconstrói os três dias anteriores, observa caixas imaginárias empilhadas na cozinha, que diminuem na medida em que aparecem vasilhas. Vira e vê o cão que já não está lá, revirando as cadeiras para agradá-la, percebe fotos guardadas em um relicário de conchinhas, que se esvaem no tom escuro dos tacos em que pisa. Não se sente nostálgica, apenas exausta. E quando caminha pros quartos esbarra em uma lasca do assoalho que se levanta. Para. Lenta, reconstrói agora o corredor onde ele deixou cair todos os fósforos da caixa. A caixa estava virada para baixo e o cigarro apagado assim ficou. Apanhou cada um, inclusive o que se escondeu na falha do assoalho, e sumiu. Imagina a composição da cena não exatamente como era, mas melhor, como era a casa em seus sonhos, logo que ali chegou. As plantas que pretendia cuidar, e logo secaram, lá estavam verdes, como no primeiro dia. O amor que sentia estava ali também, como no primeiro dia. E assim, caminhando, desconsiderou o vazio, desconsiderou os fatos, desconsiderou o tempo.

A permanência nesse estado de latência contida parece tê-la entorpecido. Sentiu dores nas pernas por não ter atinado que ali não havia onde se sentar, e havia passado horas em pé. Sem perceber se senta, e o alívio a faz notar uma mancha na parede. Aqui não se pode mais afirmar se realmente vira qualquer coisa ou se fora mera reconstrução. Ninguém jamais descobrirá uma versão última desse instante que agora relato, como se fosse agora. O que ocorreu foi que subitamente acordou. Localiza-se na antiga casa vazia, e sente, de uma só vez, todas as dores que lhe afligem. O tamanho da dor não se manifesta a contento, intrigada pela mancha azulada, escura, que percebe. Levanta-se meio cambota e vai até a parede. Tateia o leve sombreado que lhe parece uma mancha e lê ali uma frase em inglês – don’t let yourself go. Parece se confortar ao reconhecer o que lê, sem bem saber mesmo se conhece, se já ouviu, ou se leu. Corre ao quarto e busca tinta e pincel. Com preto desenha a frase, que passou aí a adornar a parte baixa da parede da sala oposta ao corredor. Senta-se outra vez e sorri. Sorri mais, até não se conter. Tomba no chão daquele riso que dói a barriga e gradualmente passa de soluço a choro. Agora chora como se fosse o último suspiro de seu peito, e, enquanto chora, escreve na parede frases que não conhece.

Dessas frases é possível lembrar algumas. Destacar passagens que enaltecem o caráter revelatório, ou a apatia angustiada da qual Lígia se libertou. E dali não se sabe o que é realmente dela, o que viu na parede, o que ouviu, ou o que leu. Mas é certo que se podia ler assim, no corredor

meus olhos são também carne e osso
mas é de amor e só meu coração
e ainda vejo, choro e penso,

sem entender bem o porquê


O princípio de um rápido exercício, não se sabe se de literatura ou de revelação. Na sala, passagens simplórias que remetiam a seu próprio gesto

sujou os dedos de guache preto
limpou os pés e foi dormir

falta lirismo,
falta cor
e rancor
pra transbordar delírio,

desequilíbrio e dor

Bem perto do teto, no quarto do meio

com o fim conjugou todos os verbos
e se desvencilhou do medo
que com a alma enxergo
ao menos à pouca luz,
assim tão cedo

da janela exaustas nuvens
apontam o alívio e a brancura

dos quais se afasta cega e pura

Lígia encheu compulsivamente todas as paredes da casa, com três diferentes tons de tinta preta, não se sabe provenientes de onde. Ao fim, se deitou no meio da sala ainda mais cansada, observou as quatro paredes com todas as variações de tamanho da letra, leu trechos que ainda não reconhecia, e se concentrou no teto, intacto, que ali virou seu céu. Só então parou de chorar, aquele choro fininho que alimentou a escrita, que fez brotar essa última gota. Sem querer fechou os olhos, e não tinha mais nem céu nem letras. A casa ainda está lá com as paredes pintadas como ela a deixou. Nenhum vestígio de tinta ou pincel, nada que sujasse o piso, nenhuma gota de amor no chão. Derramou sua prosa poética e alguns versos, como os que aqui se lembram, de uma só vez, movida por um só impulso. Relembrou, homenageou, ou apenas leu nas paredes, alguns autores que não esquecia, e não se sabe se nessas horas se confundiu, se recriou ou se, consciente, citou

Um poema que, ao lê-lo, nem sentirias que ele já estivesse escrito, mas que fosse brotando, no mesmo instante, de teu próprio coração.

Algumas citações de mais fácil identificação, como se viu, em outra parte, uma fala de Lear

Estarias melhor na sepultura do que enfrentando com o corpo descoberto estes extremos da estação.

Uma banalidade de Pascal que se refere aos dois infinitos

Quando se lê depressa demais ou demasiado devagar, não se entende nada.

E muitas outras citações podem ali ser encontradas, se não se deve exatamente dizer que tudo não passa de citação.

Lígia, depois disso, foi embora. Fechar os olhos desmoronou os seus refúgios e não teve outra opção a não ser deixar imediatamente a casa, sua última obra, sua derradeira emoção. Levantou ainda de olhos fechados e ao abrí-los reconstruiu imediatamente a sala. Seu sofá de veludo grená, o tapete e as luminárias, o artesanato barroco, os quadros que ganhou dele. Foi direto, sem titubear, à porta e saiu, sem trancar. Ao chegar à rua nenhum estranhamento, nem sequer memória, tristeza, dor, nada. Apenas um corpo fisiológico e um aparato que calcula, sabida agora que morreu seu coração.

July 13, 2006

.7

Saio da cama sem me levantar. O dia arranca das dobras mais cedo do que imagina quem persegue a sombra de se esconder da culpa. Não penso, sou só pensamento. Algo que já não se separa do que fica inerte quando saio da cama. Agora aqui estabeleço normas para agir com calma, para abandonar o quarto e revisitar a cena que o ato da noite anterior não prevera. O que se é capaz de fazer por amor é o mesmo que se pode fazer por ódio? Os limites das paixões não encontram barreiras morais e as conseqüências se tornam impensáveis e é então preciso mensurar o alcance das ações e saber que engolir seco aquilo que se planta não é de forma alguma uma tarefa agradável. Caminho pelos meus pesares, sem me fazer ouvir. Escuto sua voz vazia através de um espelho. Não há mais a possibilidade dela dizer novas palavras. Não há mais a possibilidade dela me ferir, embora nada do que ela tenha feito por si mesma tenha sido tão nocivo quanto aquilo que fez por mim. Adianto o dia ao, enfim, sair da cama por inteiro. Cambaleio por fraqueza física. Aperto os olhos por latejar a testa. Encolho por tremer de frio e ignoro a falta que ela já me faz. De ontem, meros lampejos. Um rótulo em espanhol e uma coloração amarelada como aquilo que expeli pela boca. Um banheiro verde e uma garota de cabelos ruivos, ambos simpáticos. Contracenando com a antipatia do algoz da noite. Poucas falas e muito riso. Gracejo boçal e abate sem beijo. Garanto companhia pro resto da noite que parecia longa e nem lembro mais como ficara a casa. Quanto tempo leva pra que o amor se desfaça? quanto tempo leva pra que se transforme em ódio? quanto tempo leva pra que esse ódio seja capaz de qualquer coisa? Ausentar a razão das escolhas e submergir ao sabor das paixões. É assim que se deixa de ser humano? é assim que se elimina a distinção, o que difere? Até que um rapaz na mesa ao lado se mostra radicalmente descontente com a sua companhia e tira a mão de suas pernas para quebrar-lhe um copo na cabeleira loira da garota que porventura o ofendera. Flashes de sorrisos confidentes entre o amarelo e o vermelho. Gritos de horror ao meu lado e sangue que igualava a preferência nos cabelos. Não me lembro do após a não ser da falta de um outro amarelo. Chega a segunda garrafa e agora já não sou nada além do que permanece inerte sentado no banco do bar. Ninguém mais me vê, e eu não mais vejo ninguém. Ignoro o horário e ignoro o preço e ignoro o fardo. A deixara em casa, trancada no quarto, proibida de fazer qualquer coisa que amputasse novamente a minha honra. A ciência do ato bandido, da libidinagem sem o meu consentimento e sem mim, da maledicência que me dirigiu em defesa própria e que prova a premeditação. E que me irrita, que me faz covarde, que me faz iníquo, que me desvia o olhar desse seu corpo nu e magro e branco e sujo e que eu amo. A desmedida no falar, o excesso de palavras talvez tenha sido a causa maior do impulso. Ficasse calada e eu estaria ao seu lado chorando e perdoando. Falasse menos e eu estivesse ao seu lado chorando. Mas falaste tanto que o golpe que acertei na boca era mesmo a única ação possível. O que viria depois, contudo, não fora mesmo necessário. Desacordada a amarrei na cama. Posicionei o espelho a sua frente e arranquei com as mãos cada fio dos seus cabelos. A beleza se apossou do rosto que antes também era belo, mas agora não mais se escondia. As lágrimas escorriam com parcimônia, talvez por medo talvez por prazer talvez por desejo talvez por vaidade. Quantas paixões uma mulher é capaz de manifestar por lágrimas? todas? ao mesmo tempo? A alma feminina já é por demais fetichizada. Enquanto ela se contorcia desfiz o nó das mãos, sai e tranquei por fora a porta do quarto. A janela não era uma opção e o que restava era mesmo esperar que eu voltasse, frio e calmo, me desculpasse e outra vez a amasse. Mediu seus atos o pobre homem? pensou na reação? ou simplesmente não pensou? Pensei naquilo e não me assustei, de volta à razão tinha meus atos justificados em cada uma de suas palavras que se repetiam lentamente em mim. A última vez que a vi foi através do espelho que encarei ao fechar a porta. Fui pro banho e não me senti limpo, vesti qualquer coisa e sai pra esquecer, pra que a memória fosse levada com o vento o tempo o álcool a moça, qualquer um. Agora, enquanto estabeleço normas, tento recordar as falas, o que houve antes do álcool, e examino se o que fiz não teria como causa a bebedeira futura. Não, a embriaguez justifica a amnésia, mas se isenta da crueldade. Saio do bar sem entender o por quê. As luzes acesas para que a loira ruiva de sangue fosse atendida encomendaram as despedidas. Caminho pra casa e espero sentado na calçada um motivo para entrar. A última imagem dela no espelho convida para o acerto de contas. Entro. Silêncio. Sirvo um copo d’água prevendo o peso da ressaca no dia seguinte e ignorando o sobrepeso de consciência. Tateio no bolso a chave do quarto e de uma vez abro a porta. No espelho a primeira imagem é fragmentada e causa estranheza. O cabelo de volta à cabeça a pele antes sem cor turva. A visão direta esconde o pranto e o rubor que cobre o chão atrás da cama. Cortara o pulso. Quebrara o espelho e cortara o pulso. Reto e fundo. Pingou a vida a passos lentos enquanto eu caminhava pra esquecer.

June 23, 2006

A taça do mundo é nossa?

Começo com um clichê, pra contextualizar: a bola rola entre as quatro linhas. Sob o tapete verde desfilam esperanças, sonhos e angústias. Passeiam também euros. Muitos euros. A soma das cifras chega a níveis indecifráveis. Altíssima concentração de valorizado capital humano, sob apenas algumas centenas de metros quadrados. Alguns tops – e é nossa a principal vedete, gaúcha, esguia, hábil e sorridente, destaque também fora do palco, destaque absoluto no show do intervalo, dona dos quinze minutos onde todos os demais se tornam coadjuvantes. Símbolo do nosso estilo, exemplo do diferencial, marco da superioridade. Findado o jogo, a sensação é de que nada disso tem nenhum valor, e todos se igualam.

Passo agora pro estágio da observação: estranho, mas parece que cruzada a linha do meio campo, para além das gramas onde se fixa nosso estandarte, tem também outros onze homens. Iguais em geral, mais magros, menos talentosos, mais rápidos, menos presunçosos, mais esforçados, porém menos simpáticos. Estranha a constatação, porque até então era como se não houvesse ninguém. Entraríamos em campo pra desfilar a superioridade absoluta do brazilian way of life, que aos olhos do mundo se reduz ao futebol e ao carnaval.

E estabeleço então uma espécie de diagnóstico: o mal do qual sofremos, quando o assunto é futebol, é a terrível mania etnocentrista, mesmo sem etnia, de nos colocarmos acima de qualquer suspeita, como se o hábito de vencer fosse parte de nossa natureza. Esse pecado original faz com que esqueçamos e desconsideremos um ingrediente indispensável do espetáculo: o adversário. Não importa quem seja, não importa a circunstância e nem a situação, só nos resta sermos embalados pela ufania tupiniquim que escorre pela televisão, e que não sabe aonde enfia a cara quando o adversário se faz notar. O mal assim me causa sempre um mal-estar – na vitória, quando se confirma, e na derrota, quando emergem os famosos profetas do acontecido, que se filiam a um partido dos descontentes, mas que não foram capazes de diagnosticar corretamente o mal. Pelo contrário, endossavam o coro que nos cega, mas não se sentem nada mal ao pular do galho podre pro chão firme.

Para não me alongar demais: talvez devesse cessar a maratona de impropérios que nos agigantam. Talvez não devêssemos nos alienar tanto, a ponto de falar só de nós mesmos. Não inventamos o futebol, não demos nenhuma grande contribuição tática ao esporte, não nascemos pra isso mais do que ninguém. Não transformemos o efeito em causa, a contingência em regra, um delírio em absurdo.